5 de outubro de 2021

Dia das crianças é bom que se pense nisso: na criança e em tudo que ela exige para se desenvolver bem

Ensaio para escrever esse texto e a busca pelo inusitado me assola com o clássico, piegas e clichê de que as crianças são o futuro. A resistência foi ferrenha, mas me rondou e importunou tanto, que resolvi dar-lhe uma chance e, então pensar um tanto mais sobre tal.

Aos poucos fui me encontrando com as verdades, necessidades, inspirações e provocações que essa ideia propõe. Descobri em mim mesma o tal clichê conceituado em uma teoria que defendo sempre nas rodas de conversa profissional e pessoal de que ter filhos é a única forma de salvar a humanidade, o universo, a vida. Mas… como nem tudo são flores, acrescento desavergonhadamente a verdade mais doce e cruel: mas é preciso se ocupar com eles, é preciso orientá-los, é preciso amá-los e não só tê-los. É preciso dar a eles fundamentos para que possam se desenvolver de tal modo que executem suas habilidades transformadoras no mundo.

Um movimento tolo e irresponsável se desenha em algumas famílias, pessoas, gentes que decidem pelo filho motivadas por um ritual social, uma regra sacramentada pelo acaso da “acontecência” da vida. Algo como um script previamente estabelecido e duramente cobrado. Alguns ousam citar bravamente o chamado de Deus a crescer e se multiplicar como muleta de uma decisão tão séria. Não dá não! Não e não! A decisão de ter filhos é algo sério e é uma decisão vitalícia. 

Assim, quando penso que as crianças são o futuro da nação, que ter filhos pode mudar o mundo caso eles sejam cuidados e amados e orientados só se tem a certeza de que a tarefa é árdua, é constante, é eterna. Nossa! Parece uma sentença de cruz pra carregar. Não é não! É só o que é. É vida, é responsabilidade, é seriedade com a vida, com a família, com a sociedade, com o mundo. Não dá para decidir pelos filhos sem que se queira assumir todo o complexo, delicado e essencial projeto que tal decisão engloba.

Dia das crianças é bom que se pense nisso: na criança e em tudo que ela exige para se desenvolver bem, para se perceber e agir como ser social, coletivo e individual num mundo ansioso por gente de bem, gente responsável, gente que ama de verdade, gente generosa, gente fraterna, gente honesta, gente altruísta, gentes mil dentre todas as bondades de que o mundo precisa para ser um lugar sereno e acolhedor.

A impossibilidade ou dificuldade disso fica escancarada quando se vê crianças sendo vítimas de todas as crueldades humanas. Estão jogadas pelas esquinas perambulando como mendigos internalizando que a vida não te dará nada além do quase nada; é no sinaleiro com cartazes dramáticos e chamativos que gritam para a ausência de o mínimo de dignidade. Falta comida, falta pai, falta mãe, falta creche, falta escola, falta amigo, falta crença numa vida melhor, falta olhar ambicioso, falta conhecimento, falta vontade, falta oportunidade, falta interesse por algo que nunca ousou se interessar, pois não há nenhum estimulo, nenhum reforço que o faça acreditar no desconhecido mundo dos Direitos. 

Não se pode falar do dia das crianças motivado por um consumismo aproveitador e vazio que camufla verdades tão brutais como crianças que se tornaram bandidos, crianças que não têm o que comer, crianças que não têm professor qualificado, eficiente, ciente e motivado, crianças que não têm acesso a um atendimento pediátrico eficiente e decente, crianças com deficiências que são excluídas pela impossibilidade de atendimento terapêutico, pedagógico e médico especializados, criança que gera criança, criança violentada sexualmente, criança castigada, humilhada e massacrada pela cultura pobre e podre da punição, criança que não tem escolarização, que não tem professor, que não tem presente, que não tem futuro.

Como torná-las o futuro se não nos ocupamos seriamente com isso? Incansavelmente, muitos parecem alcançar o consenso de que essa tarefa dá trabalho. Trabalhemos, então! Temos muito trabalho a fazer, muitas histórias erradas para desconstruir, muita tirania para desmantelar, muita ineficiência para corrigir, muito descaso para reparar, muito abandono para acolher, muito desamor para amar. É tempo de pensar na criança além de uma página em branco, na qual acrescento aprendizados. A criança tem autonomia sobre sua aprendizagem a partir das relações com o mundo. Assim, em vez de “colocarmos” conteúdo, deveríamos pensar no estímulo e oportunidades para que ela construa a partir de si e de seus responsáveis as descobertas e aprendizagens. É tempo de repararmos os danos causados por um olhar duradouro e persistente de que criança é ser inferior que não sente, não entende, não tem vontades, que não percebe, que não se respeita, que só deve obedecer. É tempo de muito trabalho! Tempo de retirar pedras pelo caminho e construir pontes que levam ao infinito potencial que um ser humano – inclusive as crianças (eu insisto na redundância) – tem de pensar, de se expressar, de sentir e de viver.

Trabalhemos como pais que se responsabilizam, que assumem o compromisso de guardar, resguardar, orientar, acolher, amar seus filhos. Como professores que se especializam, estudam, desvendam, conhecem e assumem o processo de desenvolvimento tido como adequado a uma criança e todos os mecanismos para executá-lo com retidão, profissionalismo, dedicação e eficiência.

Como psicólogos, como tios, como terapeutas, como pediatras, como delegados, como avós, como babás, cuidadores, como psicopedagogos, como irmãos, como padrinhos, como amigos, como qualquer um ou quaisquer todos que vivem e convivem com crianças, trabalhem para que essa criatura possa, a partir do presente, se apropriar do futuro como sua possibilidade de ser dona de si e do mundo inteiro vivendo nele e transformando-o a partir de sua relação consigo, com o outro e com o mundo.
É dia das crianças! Pensemos nelas, então! 

Mariza Domingues
Professora por vocação e psicopedagoga por consequência.
Em outubro de 2021

 

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